Entre traficantes e milicianos
estudo de caso sobre seletividade e racismo no exercício do poder punitivo pelo Estado
DOI:
https://doi.org/10.59901/2318-373X/v24n7Palavras-chave:
Poder punitivo, Criminalização Secundária, RacismoResumo
O presente artigo objetiva pesquisar a seletividade praticada pelo Estado no exercício do poder punitivo, em especial quanto ao racismo. Ao mesmo tempo, busca mostrar, a partir de entrevistas, as representações de defensores públicos do Estado do Rio de Janeiro quanto ao caráter seletivo na repressão às milícias em comparação com o modo de atuação das forças de segurança para controle dos traficantes de drogas. Neste último caso, a lógica parte do confronto policial, que obtém como resultado a prisão ou a morte dos traficantes, por vezes através do uso desproporcional da força, chegando a se criar a figura do auto de resistência para legitimar a atuação policial (Duarte, 2019). Em grande medida, os entrevistados manifestaram a percepção de que os envolvidos com o tráfico de drogas seriam em sua maioria negros, enquanto nos crimes que envolvem as atividades de milícias haveria uma distinção: o alto escalão seria composto majoritariamente por pessoas brancas, enquanto os de menor hierarquia seriam em geral negros. Para se começar a testar essa hipótese indicada pelos entrevistados, analisamos dados da base do Instituto de Segurança Pública (ISP) sobre a cor da pele e a profissão das pessoas presas na cidade do Rio de Janeiro, entre janeiro de 2015 e dezembro de 2020, por envolvimento com quatro tipos de crimes (tráfico de drogas, milícia, associação criminosa e organização criminosa). Com isso tencionamos apurar quem são as pessoas presas pelos crimes que envolvem as milícias, para se verificar se o alvo da repressão policial é o alto escalão e se são pretas e pardas ou brancas essas pessoas capturadas. O resultado sinaliza a predominância de pretos e pardos tanto nas prisões pelo crime de tráfico de drogas (77,6%), quanto pelos crimes que envolvem as milícias (58,4%). Em se reconhecendo como válida a representação dos entrevistados, o predomínio de pretos e pardos também nas detenções por crimes ligados às milícias caracterizaria a seletividade dentro da seletividade, na medida em que os impositores de regras, ao atuarem na criminalização secundária, visariam ao baixo escalão das milícias, sinalizando a possível existência de racismo institucional e estrutural por parte das agências de controle penal do Estado, hipótese a ser verificada por meio de pesquisas complementares.
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